HISTÓRIA CULTURAL - RESUMO DE LIVRO
SANDRA PESAVENTO, compreendendo a importância de inserir-se no debate contemporâneo sobre a historiografia e a História, introduz seu trabalho com um diálogo, que, nas suas palavras, enfatiza o enredo do livro: “Se a História Cultural é chamada de Nova História Cultural é porque está dando a ver uma nova forma de a História trabalhar a cultura. Não se trata de fazer uma história do Pensamento ou de uma História Intelectual, ou ainda mesmo de pensar uma História da Cultura nos velhos moldes, a estudar as grandes correntes de idéias e seus nomes mais expressivos. Trata-se antes de tudo, de pensar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo. A cultura é ainda uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de forma simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às coisas, às ações e aos atores sociais se apresentam de forma cifrada, portanto, já um significado e uma apreciação valorativa”.
Assinala que 80% por cento da produção historiográfica brasileira vêm do campo da História Cultural a partir dos anos 90, daí a atualidade e importância do tema e sua transversalidade.
Clio e a grande virada da História
Dessa forma, no dizer da própria autora, Clio a musa da História do Monte Parnaso do imaginário grego, filha de Zeus com Mnemósine, a Memória:
“No tempo dos homens, e não mais dos Deuses, Clio foi eleita a rainha das ciências, confirmando seus atributos de registrar o passado e deter a autoridade da fala sobre fatos, homens e datas de um outro tempo, assinalando o que deve ser lembrado e celebrado”, hoje, seus atributos, assumem a faceta emblemática e difundida da chamada História Cultural.
A ascensão da História Cultural, segundo a autora, com a crise dos paradigmas que até então balizavam a historiografia com ênfase no Marxismo e na Escola dos Annales, insinua-se na cena acadêmica da História com o pós-Guerra, a crise de Maio de 68 na França, a guerra do Vietnã, a ascensão do feminismo e o surgimento do ‘New Left’ (Nova Esquerda Marxista dos anos 50 na Inglaterra).
A tendência representou também uma maneira de “escapar” de determinadas instâncias da realidade globalizante, como cultura, meios de comunicação de massa e de sua logicidade.
“... foi ainda de dentro da vertente neomarxista inglesa e da história francesa dos Annales que veio o impulso de renovação, resultando na abertura desta nova corrente historiográfica e que chamamos de História Cultural ou mesmo de Nova História Cultural”. (p.10).
Analisa PESAVENTO que nos anos 80, quando da chamada crise dos paradigmas, a historiografia mundial, acentuada pelo historismo ou historicismo de Ranke, “... a chamar a atenção para as descontinuidades dos tempos históricos e a necessidade de buscar os sentidos de cada momento do passado...” (p.10), e o positivismo de Comte, era predominante; enquanto no cenário nacional, dominava uma postura marxista com reminiscências em Caio Prado Jr., e Nelson Weneck Sodré, e uma realidade marcada pela abertura lenta e gradual da Ditadura Militar de 1964.
Assim, “Por outro lado, o conceito de ideologia foi considerado insuficiente para a análise do chamado “mundo das idéias”, amarrado que estava às determinações da classe e do mecanismo da dominação e subordinação” (p.12) da linha do marxismo, e “Em outra ponta, as perspectivas globalizantes da escola dos Annales, particularmente com relação às ambições de uma história total, tal como construída por Fernand Braudel, revelavam a sua pouca possibilidade de criar seguidores.” (p.13).
Em virtude desse quadro pouco animador, “... particularmente, nas décadas de 60 e 70, a História não ocupava mais o lugar de destaque entre as ciências sociais, sobrepujada que fora pela Sociologia, a Ciência Política e também a Economia”.
Então, “Para fugir a essa posição de vazio teórico, só mesmo recorrendo a uma história marxista, com seu modelo explicativo no qual, de antemão, já se sabiam as respostas. Nesse sentido, a História estava, literalmente, encurralada”. (p. 14).
A História Cultural, ou Nova História Cultural no seu entender, vem, de certa maneira, dar novo sentido à História e aos domínios da “Deusa Clio”: “A História está em alta, sim, e isso se deve, em grande parte, às suas novas tendências de abordagem do real passado” (p. 14).
Seguindo essa trilha, PESAVENTO, segura, assevera “Mudou o mundo, mudou a história, mudaram os historiadores” (...) “É possível traçar uma história dessa mudança na História, que assumiu a forma da História Cultural?” (...) “Temos consciência de que o que se chama hoje História Cultural envolve historiadores com posturas bem diversas, como Roger Chartier, Robert Darnton e Carlo Ginzburg.” (p. 16).
Precursores e redescobertas: a arqueologia da História Cultural
Essa nova visão ou construção passou pelo aprimoramento “No decorrer da primeira metade do século XIX, o espírito romântico produziu historiadores preocupados em escrever histórias nacionais (...) destaca-se o francês Jules Michelet.”.
“O que chamou a atenção dos historiadores contemporâneos foi mais propriamente o esforço, levado a efeito por Michelet, de identificar um agente sem rosto – o povo, as massas – como personagem da história e como protagonista dos acontecimentos...”. (p. 19). Além de outros temas relativamente atuais, como, por exemplo, as mulheres e feiticeiras.
Perpassando as diversas escolas e autores SANDRA PESAVENTO procura sintetizar a evolução do pensamento nas diversas escolas que influenciaram a consolidação da temática da História Cultural: “Embora ainda pouco estudada, em geral, pelos historiadores, a vertente do culturalismo alemão, na senda aberta pelo pensamento de Kant e Hegel, é fundamental para o que chamamos de uma arqueologia da História Cultural”. (p 21).
“Não seria demais lembrar, nesta linha de precursores, a figura de Jakob Burckhardt, com sua obra publicada em 1860, A civilização da Renascença na Itália... pelo que rompia com os tradicionais esquemas cronológicos de sucessão linear no tempo”. (...) “Leopold Von Rank, já antes assinalado, fora integrante da postura intelectual definida como historicismo... Ranke se voltava contra a filosofia da História, negando que houvesse um fio condutor ou postulado imutável a conduzir os fatos ao longo do tempo”. (...) “Já Johann Gustav Droysen... se valia da ficção para construir a sua narrativa, compondo uma espécie de ilusão ou versão sobre o passado”. (p. 22).
Destaca entre outros “Wilhelm Dilthey, historiador e filósofo da cultura, foi um instaurador da hermenêutica, ao postular a necessidade de vencer a distância temporal do passado” (p. 23).
Importante a contribuição da Psicanálise de Sigmund Freud e de Jung que “... com a sua procura dos sentidos mais ou menos velados que as imagens comportavam, abriu caminho para os estudos do simbólico e do consciente, além de revelar a importância do indivíduo”. (p. 23).
No campo da Antropologia Cultural e da Etnologia Marcel Mauss e Émile Durkheim nos idos do século XIX e XX, dado o destaque conferido às representações “... pela atenção que dava ao processo de construção mental da realidade, produtor de coesão social e de legitimidade a uma ordem instituída, por meio de idéias, imagens e práticas dotadas de significados que os homens elaboravam para si” (...) “Como uma forma de entendimento segundo a qual os homens elaboravam formas cifradas de representar o mundo, produzindo palavras e imagens que diziam e mostravam mais além do que aquilo que era expresso e mostrado nos registros materiais” (p. 24).
Assertivamente vai buscando construir um arrazoado dentro da produção intelectual, assegurando que “A rigor, a história, na sua virada dos paradigmas, iria se nutrir, em certa dose e medida, de todas essas pequenas trilhas e indícios para elaborar e assumir uma nova postura”.
Assim, com Walter Benjamim, na Alemanha, e Antonio Gramsci, na Itália nos anos de 1930, a partir do pensamento marxista. “Gramsci... ao propor uma outra concepção de entendimento do Estado, da cultura e dos intelectuais.
Em certa medida, com a própria rigidez da análise classista da mudança social, mostrando a riqueza e a mobilidade dos grupos dentro do esquema de alianças que se realiza no âmbito da sociedade civil para a construção da hegemonia.” (p. 25).
E Walter Benjamim “Sua meta é realizar uma espécie de arqueologia da cultura no século XIX, e decifrar essas imagens que os homens construíram sobre a realidade. (...) “...parte do conceito marxista do fetichismo da mercadoria para apresentá-la como fantasmagoria: imagens de desejo, ilusórias, que representavam o mundo, dizendo-o de uma outra forma, mostrando o que deve ser mostrado, travestindo a realidade e ocultando o que é possível ser ocultado” (p. 25 3 26).
“Gaston Bachelard, filósofo do imaginário que na década de 1940 ousou reconciliar a ciência com o sonho...”; “Ernst H. Gombrich ou Erwin Panofsky, ensinaram na primeira metade do século XX, a olhar as imagens pictóricas de uma outra forma, vendo nelas a vida, os valores, os sentimentos, as razões de um outro tempo” (p. 26).
Paul Ricoeur nos anos de 1950 “... discutia não só a possibilidade de obtenção da verdade, mas a própria existência de uma finalidade na história” (...) “Por exemplo, é por meio da hermenêutica de Paul Ricoeur que vêm a ser discutidos os distanciamentos e as aproximações entre as narrativas literárias e histórica, pondo em causa as dimensões da verossimilhança e da veracidade dos discursos”. (p. 27). Além disso, contempla PESAVENTO “Um amplo debate sobre o estatuto do discurso historiográfico se abria quando, em 1967, Roland Barthes se indagava sobre os traços que poderiam distinguir a narrativa histórica da ficcional”. (p. 27).
Edward Thompson “... introduziu inovações nos planos da teoria, do método, da temática e das fontes a serem utilizadas pela história... abandonou a clássica definição marxista-leninista, que identificava a classe pela posição ocupada junto aos meios de produção. Alargou o conceito, entendendo que a categoria deveria ser apreciada no seu fazer-se, no acontecer histórico, na sua experiência como classe... Thompson resgatava para o historiador a dimensão do empírico: a pesquisa de arquivo era indispensável, e nesse ponto se abriam não só novos enfoques temáticos como nova documentação... Para surpreender essas mudanças, do cotidiano da vida e do trabalho, era preciso encarar novas fontes: jornais, processos criminais, registros policiais, festas, etc.”. (p.29).
Continua enfatizando os neomarxistas como Georges Rudé “... com seus estudos sobre a multidão”. Raymond Williams que “... pôs em foco a construção da cultura na Inglaterra e a forma como, desde a cidade, o campo foi ressignificado, induzindo a toda uma nova percepção da realidade pelos agentes sociais. Nesse sentido, a cultura passava a ser considerada fator de mudança social, mesmo como agente decisivo no processo de mudança da história” (p. 30).
A Escola dos Annales contribuiu decisivamente com sua história das mentalidades, pois “Lucien Febvre havia demonstrado preocupação com os domínios do simbólico” e a tendência dos estudos econômico/social de Fernand Braudel no âmbito da segunda geração. Na terceira geração com Pierre Goubert e Emanuel Le Roy “... o nível cultural passou a ser entendido como uma forma de determinação primária da sociedade”. (p. 31).
“Por outro lado, a história social dos Annales trabalhava com a idéia da diferença, e não a da contradição de classe” (p. 31). “Tais questões seriam, grosso modo, as seguintes: como as elaborações mentais, produtos da cultura, se articulavam com o mundo social, a realidade da vida cotidiana? Como era possível estabelecer correspondências entre todos esses níveis e também objetos de estudo? Como era possível descobrir os sentimentos e significados que os homens atribuíam a si próprios e às coisas? Até onde iam os limites da História, se precisassem diálogos com outros campos de conhecimento ou outras ciências?” Michel Foucault “... dizia supor que em toda sociedade a produção de discursos estava controlada por procedimentos de classificação, avaliação, divisão, separação e limites... Para Foucault não haveria separação entre texto e contexto, e aquilo que se convencionava chamar de real era dado por objetos discursivos, fixados historicamente pelos homens”. (p. 32 e 33).
“O pensamento foucautiano incomodou os historiadores, ao instalar uma História sem sujeito e ao tomar o discurso pelo real, além de indicar que o objeto se define pela prática discursiva”. Já para Paul Veyne em “Como se escreve a história, publicado em 1971: “A História era, no seu entender, uma narrativa verídica, como relato do que ocorrera um dia... a História tinha um campo indeterminado, salvo a exigência de lidar com o acontecido, o que fazia da história uma narrativa distinta daquela da literatura” (p. 33). O historiador norte-americano Hayden White, com sua Meta-História, em 1973, “...afirmava que a História era uma forma de ficção, tal como o romance era uma forma de representação” (p. 34).
Michel de Certeau em 1975 com o livro a “escrita da história” afirma que “... a história do fazer história teria sido, no Ocidente moderno, um processo de invenção ou ficção que busca explicar o passado desde o presente” (p. 35).
Assim é que “O debate modernidade X pós-modernidade parecia mesmo atingir em cheio o campo da História, pois, com a crítica ao racionalismo e às pretensões da Historia à totalidade, se indicava estar atacando as conquistas de uma História moderna, dotada de um método e de um sólido caminho de investigação dos arquivos. Do outro lado, se identificava uma História pós-moderna, sem nenhum referencial teórico de análise, campo de um vale-tudo absoluto de escolhas temáticas, sem pretensão alguma de racionalidade”. (p. 37).
A partir de então a autora se detém na História Cultural como campo temático de trabalho consolidado na historiografia.
Mudanças epistemológicas: a entrada em cena de um novo olhar
A História Cultural reorienta a postura do historiador frente aos conceitos, sendo um dos principais, o da representação. “A representação envolve processos de percepção, identificação, reconhecimento, classificação, legitimação e exclusão.” (p.40).
A partir desse parâmetro, entendendo que “Aquele que tem o poder simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada em uma relação histórica de forças.” (p. 41).
Continua a historiadora, “Neste ponto, um novo conceito se apresenta como fazendo parte do elenco de mudanças epistemológicas que acompanham a emergência da História Cultural: o imaginário”. (...) “O imaginário comporta crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um sabe-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito.” Que para o filósofo Cornelius Castoriadis vai “Para além da sua dimensão histórica, o imaginário é capacidade humana para representação do mundo, com o que lhe confere sentido ontológico.”. E complementa “Nesta medida, o historiador Le goff aproxima-se do filósofo Castoriadis, quando este diz que a sociedade só existe no plano do simbólico porque pensamos nela e a representamos, desta ou daquela maneira.” (p. 45)
Embora que, em contradição, o imaginário para a Antropologia surge como “... estruturas mentais, de tendências permanentes de organização do espírito humano. Eles são os arquétipos, elementos constitutivos do imaginário que atravessam os tempos, assinalando formas de pensar e construir representações sobre o mundo... argumenta Yves Durand” (p. 45 e 46).
Lucian Boia é o historiador que “...se propõe resolver essa tensão no âmbito do imaginário... O autor tanto vê persistências estruturais do espírito quanto uma re-elaboração permanente ao longo da história dos tais arquétipos imaginários, que sintetiza em oito exemplos a atravessar as épocas: a consciência de uma realidade transcendente; a idéias da morte, do duplo e do além; a alteridade; a unidade; a atualização das origens; a decifração do futuro; a necessidade de evasão; as lutas ou polarização dos contrários.” (p. 46).
Dessa forma conclui “Estivemos a falar até agora da construção de uma narrativa histórica, que tem como meta chegar, o mais próximo possível, da verdade do acontecido. Mas no campo da História Cultural, o historiador sabe que a sua narrativa pode relatar o que ocorreu um dia, mas que esse mesmo fato pode ser objeto de múltiplas versões.” (p. 51). Que “Para Natalie Zemon Davis, os historiadores teriam ultrapassado a clivagem de Aristóteles entre a História e a Literatura, pois hoje se admite que a História joga com o possível, o plausível, o verossímil.” (p. 53). “Nessa medida, História e Literatura são formas de dar a conhecer o mundo, mas só a História tem a pretensão de chegar ao real acontecido. Estes são, segundo Ricoeur, o drama e a especificidade da narrativa histórica. Ao estabelecer uma aproximação entre a Memória e a História, apresentando-as como discursos de representação do passado, Ricoeur diz que, à História, estaria negada a pequena alegria do reconhecimento preservada à Memória”. (p.55).
“Um outro conceito ainda se impõe, dizendo respeito a algo que se encontra no cerne daquilo que o historiador do passado pretende atingir: as sensibilidades.” (...) A rigor, a preocupação com as sensibilidades da História Cultural trouxe para os domínios de Clio a questão do indivíduo, da subjetividade e das histórias de vida. Não mais, contudo, uma história biográfica, dos grandes vultos da História, mas muito mais biografias de gente simples, da gente sem importância, dos subalternos. Uma história de indivíduos que deriva assim, de uma história social renovada: do estudo dos pobres, dos subalternos enquanto classe ou grupo, detentores de uma expressão cultural dita popular, passou-se a uma história de vida das pessoas humildes, na qual possam ser surpreendidos os sentimentos, as sensações, as emoções, os valores.” (p. 56).
Por fim “A produção de identidades, no caso, é sempre dada com relação a uma alteridade com a qual se estabelece a relação. Proximidade e distância coexistem. Como diz Ginzburg, somos sempre estrangeiros com relação a algo ou alguém.” (p. 60).
Em busca de um método: as estratégias do fazer História
Passamos agora especificamente, no tocante à História Cultural, buscar o caminho da construção desse saber, como afirma a autora “É a questão formulada ou o problema que ilumina o olhar do historiador, que transforma os vestígios do passado em fonte ou documento, mas é preciso fazê-los falar”.
“Carlo Ginzburg, em ensaio já clássico, nos fala de um paradigma indiciário, método este extremamente difundido na comunidade acadêmica. Nele o historiador é equiparado a um detetive, pois é responsável pela decifração de um enigma pela elucidação de um enredo e pela revelação de um segredo... Aliás, refere-se Ginzburg, o próprio Marx afirmara que, se a realidade fosse transparente, não haveria necessidade de interpretá-la!”. (p. 63).
“O paradigma indiciário de Ginzburg encontra correspondência naquela estratégia já anunciada décadas antes por Walter Benjamim e redescoberta pelos historiadores: o método da montagem”. (p. 64).
“Montar, combinar, compor, cruzar, revelar o detalhe, dar relevância ao secundário, eis o segredo de um método do qual a História se vale, para atingir os sentidos partilhados pelos homens de um outro tempo”. (...) “Do texto ao extratexto, esse procedimento potencializa a interpretação e assinala uma condição especialíssima, que é o verdadeiro capital do historiador: a erudição. (p. 65).
“É essa bagagem prévia que lhe permite realizar, por exemplo, uma leitura intertextual, ou seja, ver em um texto dado a leitura, apropriação e ressignificação feita a partir de um outro. Ler, em um texto, outro; remeter uma imagem a outra, associar diferentes significantes para remeter a um terceiro oculto, portador de um novo significado”. (p. 66).
“Mas, em matéria de método, é possível ainda falar na descrição densa, estratégia apropriada da Antropologia e levada a efeito pelas análises de Clifford Geertz”. (p. 66).
PESAVENTO assevera que o método é que fornece ao historiador meios de controle e verificação, que permite fazer da História uma ficção controlada, convertendo o documento em prova, podendo daí resultar, que a História poderá ser testada, analisada à comprovação, uma vez que o leitor ou estudioso à luz das fontes-provas e da linguagem poderá percorrer o mesmo caminho do pesquisador. E assim, como o recurso do extratexto, revelando o método, compondo, estabelecendo analogias, contrastes, superposições e nexos importantes para o resultado final da obra.
Correntes, campos temáticos e fontes: uma aventura da História
A seguir, com base nesses parâmetros epistemológicos anunciados, ressalta SANDRA PESAVENTO, que, de tudo, restou uma história revigorada com a crise de paradigmas, com ênfase, claro, e o grande apelo de mídia proporcionado pela História Cultural, despertando público, criando raízes e dando margem ao aparecimento de novas correntes.
As principais, no seu entender, a corrente da escrita e da leitura, das grandes narrativas históricas, que ao aproximar-se da literatura, não se rende ao estilo, permeando a própria literatura e ficção de história.
A corrente da micro-história, que, a partir do fragmento de uma dada realidade social, de um olhar microscópico sobre o objeto responde questões que podem ser relativizadas, de forma que, com as ferramentas necessárias, com imaginação, com sensibilidade e com, talvez, uma descrição densa, como fez muito bem Carlo Ginzburg, em “O queijo e os vermes”, com os riscos é claro da hipertrofia, se sobrepõe dentro da
História Cultural de forma marcante.
A Nova História Política, uma terceira corrente de destaque no livro, que procura fazer uma releitura do político pelo cultural “Abandonando formas ainda herdadas de uma tradição positivista, linear, seqüencial e causal de análise do político ou ainda de um viés marxista, a ver a política como manifestação superestrutural de uma infra-estrutura socioeconômica, ou ainda mesmo a uma vertente da ciência política, a estudar os comportamentos políticos dos grupos, os partidos e as eleições, o renascimento da história política, a aproximação com a historia cultural rendeu bons frutos”. (p. 76).
A par dessas escolas, surgiram campos temáticos importantes da produção historiográfica da História Cultural.
Cidades, local de realização da produção e da ação social, do imaginário urbano, “De um lado pensadores como Voltaire identificam a cidade como centro de difusão da cultura e da civilização, como forma superior das realizações humanas, núcleo difusor da novidade e do bem-estar da vida; de outro, a cidade comparece como noir. Cidade maldita, cidade-pecado, ela é reduto do vício, do perigo, do enfrentamento social, a expor a miséria e a degradação da condição humana, tal como pensou Engels. Mas como analisa Schorske, a cidade produziu também uma forma de qualificação amoral e cética: Baudelaire a celebra como situada acima do bem e do mal, desprezando todas as regras, tal como se configura na modernidade”. (pp.78 e 79).
História e Literatura “Para a História Cultural, a relação entre a História e a Literatura se resolve no plano epistemológico, mediante aproximações e distanciamentos, entendendo-as como diferentes formas de dizer o mundo, que guardam distintas aproximações com o real. Clio e Calíope participam da criação do mundo, como narrativas que falam do acontecido e do não-acontecido, tendo a realidade como referente a confirmar, a negar, a ultrapassar, a deformar”. (p. 80).
Imagens na História Cultural “A rigor, se reconhece a força de imagem, como comenta Louis Marin, pelos seus efeitos: pelo seu poder de ação, de mobilizar autores, de gerar ações, pela visibilidade de seus efeitos sobre corpos e mentes”. (...) “A partir desse momento, a imagem, enquanto registro de algo no tempo, é testemunho de época, mas testemunho também de si própria, tal como o texto literário, ou seja, é o momentos de sua feitura, e não a temporalidade do seu conteúdo ou tema que cabe atingir”. (pp.87 e 88).
As Identidades “Enquanto representação social, a identidade é uma construção simbólica de sentido, que organiza um sistema compreensivo a partir da idéia de pertencimento”. (p. 89).
A Alteridade “... os outros são, também, muitos, e podemos conviver com eles em termos de admiração ou emulação, de sedução e desejo, de estranhamento e distância ou, no seu caso-limite, em termos de negação. Nesse caso, estaríamos diante da modalidade perversa da alteridade”. (p.92).
Por fim, em gestação, mais um campo de pesquisa dentro da abordagem cultural da história, que surge, é a História do Tempo Presente.
História do Tempo Presente “Ora, tal campo implica tomar esta História na qual os acontecimentos estão ainda a se desenvolver. Trata-se de uma História ainda não acabada, em que o historiador não cumpre o seu papel de reconstruir um processo já acabado, de que se conhecem o fim e as conseqüências. Não se trata, pois da construção ex-post de algo que ocorreu por fora da experiência do vivido, pois o historiador é contemporâneo e, de uma certa forma, testemunha ocular de um processo que ainda se desdobra e do que não se conhece o término”. (p. 93).
Outro é o da História e Memória que “... são representações narrativas que se propõem uma reconstrução do passado e que se poderia chamar de registro de uma ausência no tempo”. (...) “... cabe dizer que a contrapartida da Memória é o esquecimento. Não é possível tudo lembrar, pois a Memória é seletiva, tal como a matéria do esquecimento também é objeto de processos que ultrapassam a escala do inconsciente”. (p.95).
Finalmente SANDRA PESAVENTO afirma que com relação ao espectro das fontes, esse se revela quase que infinito ao pesquisador da História Cultural. “Uma idéia na cabeça, uma pergunta suspensa nos lábios, o mundo dos arquivos diante dos olhos e das mãos. Nessa medida, tudo pode vir a tornar-se fonte ou documento para História, dependendo da pergunta que seja formulada”. (p.97).
Uma difusão mundial: a História sem fronteiras
PESAVENTO faz então um apanhado de todas as escolas e de seus expoentes, a partir da França e pelo redor do mundo, citando nomes e obras, muitos deles já citados neste resumo de sua obra: “Entendemos, pois, que essa citação de autores que, no nosso entender, trabalham com a História Cultural, não é completa e não esgota o panorama historiográfico desta corrente”. (p. 105).
Os novos parceiros da História; nas fronteiras do conhecimento
A História Cultural tornou mais abrangente o campo de trabalho. “Quando a História se defronta com os seus novos parceiros, que vêm da Literatura, da Antropologia, da Arte, da Arquitetura e do Urbanismo, da Psicologia e da Psicanálise, o diálogo a ser mantido não estabelece hierarquias ou territórios de propriedade de um campo específico”. (p. 109). Assim como fora em outros tempos com a Heráldica, a Diplomática ou a Geografia. Com as Ciências Políticas, a Sociologia e a Economia.
Os riscos da empreitada: alerta geral
Para os historiadores de plantão “O sucesso da História Cultural, no plano da academia e da mídia, não deve obscurecer o fato de que há riscos de análise, há críticas, há problemas que se colocam diante do historiador”. (p. 115).
“O que o historiador da cultura deve ter em mente, hoje, é algo que nem é tão novo assim: existem hierarquias de verdade, verdades parciais, transitórias, pessoais ou sociais, como uma espécie de verdades provisórias, aceitas e reconhecidas como tal em uma época dada”.
SANDRA PESAVENTO conclui seu trabalho bem elaborado e distinto “Mas a História Cultural apresenta riscos e põe exigências: é preciso teoria, sem dúvida, ela exige o uso desses óculos, conceituais e epistemológicos, para enxergar o mundo”.
“Como resultado, propõe versões possíveis para o acontecido, e certezas provisórias”. (...) “Parece difícil, mais talvez resulte dessa condição o seu maior encanto, fazendo do fazer História uma aventura, sempre renovada, do conhecimento”. (p. 119).
*PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Coleção “Histórias e Reflexões”. Editora Autentica, 2. Ed – Belo Horizonte, 2004: ISBN 85-7226-078-2. (Resumo da Obra apresentado na cadeira de História Cultural ministrada pela Professora Maria Arleilma do Curso de História da URCA/Universidade Regional do Cariri em Novembro de 2010).
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