quarta-feira, 22 de setembro de 2010

AS TRÊS ESPÉCIES DE AMIZADE SEGUNDO ARISTÓTELES

ÉTICA A NICÔMACO
"Há três espécies de amizade, como dissemos no começo de nossa investigação, e em relação a cada uma delas alguns são amigos em igualdade de condições, e outros em uma situação de superioridade de um dos amigos em relação ao outro (não só homens igualmente bons podem tornar-se amigos, mas também um homem pode fazer amizade com outro não tão bom, e igualmente nas amizades que têm por base o prazer ou a utilidade os amigos podem ser iguais ou desiguais em relação aos benefícios que proporcionam).
Desse modo, os iguais devem ser amigos em uma base de igualdade no amor e tudo o mais, enquanto os desiguais devem beneficiar-se na proporção de sua superioridade ou inferioridade.
As queixas e recriminações surgem apenas, ou principalmente, nas amizades que têm por base a utilidade, e é natural que seja assim. Com efeito, os que são amigos com base na virtude anseiam por fazer bem um ao outro (isso é característico da virtude e da amizade), e entre homens que se emulam nessas coisas não pode haver queixas nem querelas. Nenhum homem é ofendido por um outro que o ama e lhe faz bem; aliás, se é uma pessoa de nobre sentimentos, sua "vingança" é fazer bem ao outro. Um homem que supera o outro nos serviços prestados não se queixará de seu amigo, já que obtém aquilo que pretendia, e o que cada um deles deseja é o bem. Não surgem muitas queixas nas amizades baseadas no prazer, pois ambos os amigos recebem simultaneamente aquilo que desejam, se passar o tempo juntos lhes propicia prazer; e seria ridículo se alguém se queixasse de outro por não lhe proporcionar prazer, pois depende dele não passar seus dias com esse outro.
Mas a amizade que visa à utilidade traz sempre muitas queixas; com efeito, como cada um se utiliza do outro em seu próprio benefício, eles querem sempre sair ganhando na transação, mas sempre acham que saíram prejudicados, e então censuram seus amigos alegando que não recebem tudo o que necessitam e merecem; e aquele que neste caso está fazendo bem ao outro não pode ajudá-lo tanto quanto este deseja.
Como há duas espécies de justiça, uma não escrita e a outra definida por lei, parece haver também uma espécie moral e outra legal de amizade baseada na utilidade. Desse modo, as queixas surgem principalmente quando os homens não desfazem a relação dentro do espírito do mesmo tipo de amizade que existia na época em que a iniciaram.
O tipo legal é aquele que é estabelecido sobre termos definidos. Sua variante puramente comercial baseia-se no pagamento imediato, ao passo que a variante mais liberal dá uma certa margem de tempo, porém estipula uma troca definida. Nesta variante, a dívida é clara e sem ambiguidades, mas a sua tolerância quanto ao prazo para retribuição contém um elemento de amizade, e por isso em algumas cidades não são admitidas ações judiciais baseadas em tais acordos, pois se considera que os homens que transacionaram em uma base de confiança devem aceitar as consequencias.
O tipo moral não estipula condições predeterminadas. Faz uma doação ou algum serviço é prestado como se fosse a um amigo, contudo espera receber uma retribuição equivalente ou maior, como se não tivesse dado e sim feito um empréstimo; e, se a situação da parte que deu é pior após desfazer-se a relação do que antes de havê-la contraído, esse homem que deu se queixará. Isso ocorre porque todos os homens, ou a maioria, desejam o que é nobre mas escolhem o que traz vantagem; no entanto, é nobre fazer o bem a um outro sem ter em vista alguma retribuição, mas a vantagem está em receber benefícios.
Se for possível, portanto, cumpre retribuir com o equivalente do que se recebe, pois não devemos fazer de um homem nosso amigo contra a sua vontade; em casos como este é preciso reconhecer que nos enganamos de inicio, aceitando um benefício de uma pessoa da qual não devíamos tê-lo aceito, visto que ela não era nossa amiga, e tampouco de alguém que o fez só por fazer, e devemos saldar as contas exatamente como se tivéssemos sido beneficiados mediante termos predefinidos. Efetivamente, teríamos concordado em retribuir se pudéssemos (senão, o próprio benfeitor não contaria com a retribuição); por conseguinte, se for possível devemos retribuir. Mas desde o princípio devemos aquilatar a pessoa por quem estamos sendo beneficiados e em que condições ela procede, a fim de aceitar o benefício dentro de tais condições, ou então recusá-lo, se for preferível.
É discutível se devemos medir um serviço por sua utilidade para o bneficiário e retribuí-lo nesses termos, ou se devemos medi-lo pela benevolência do benfeitor. De fato, os que recebem o benefício dizem ter recebido de seus benefeitores algo que custou pouco a estes e que eles poderiam ter recebido de outros, e desse modo minimizando o serviço; enquanto a pessoa que concedeu o benefício, ao contrário, afirma ter feito o máximo que podia, que isto não poderia ter sido obtido de outrem, e que o benefício foi prestado em um momento de perigo ou de necessidade.
Então, se a amizade é da espécie que visa à utilidade, certamente a vantagem para o beneficíado é a medida, pois é este que solicita o serviço e o outro o ajuda supondo que irá receber uma retribuição equivalente. Assim, a ajuda terá sido exatamente igual à vantagem do beneficiado, o qual, portanto, deve retribuir com o equivalente do que recebeu, ou mais (pois isso seria mais nobre).
Por outro lado, nas amizades que se baseiam na virtude não surgem queixas; aqui, a intenção do benfeitor é uma espécie de medida, uma vez que na intenção se encontra o elemento essencial da virtude e do caráter.
Também nas amizades que se baseiam na superioridade surgem divergências; cada parte espera obter mais proveito delas, porém quando isso acontece, a amizade se desfaz. Não somente o homem melhor pensa que merece receber mais, já que um homem bom merece efetivamente receber mais, como o homem mais útil espera o mesmo, alegando que um homem inútil não deve receber tanto quanto o útil, pois nesse caso a amizade deixa de ser amizade para converter-se em caridade, se o que recebe não corresponde ao valor dos benefícios conferidos. Essas pessoas supõem que do mesmo modo que em uma sociedade comercial os que entram com mais dinheiro devem ganhar mais, o mesmo deve ocorrer na amizade. Mas as pessoas inferiores ou que se encontram em estado de necessidade, tem pretensões opostas a esta: pensam que compete a um bom amigo ajudar os amigos necessitados. De que serviria, pensam elas, ser amigo de um homem bom e poderoso se não se tirasse nenhum proveito disso?
De qualque modo, parece que cada parte está certa em sua asserção, e que cada um deveria tirar mais vantagem da amizade do que o outro, todavia não da mesma coisa; o superior deveria obter mais honras, e o inferior, em ganho, pois a honra é o prêmio da virtude e das benfeitorias, e o ganho é a recompensa da inferioridade.
Parece acontecer o mesmo nas disposições constitucionais; o homem que não contribui com nada para o bem comum não é distinguido com honras, pois o que pertence à comunidade é dado a quem a beneficia, e as honras pertencem á comunidade. Não é possível receber ao mesmo tempo riqueza e honra do patrimônio comum, pois ninguém se conforma em receber o menor quinhão em tudo; portanto, ao homem que perde a riqueza confere-se honraria, e riqueza ao que consente em ser pago, já que a proporção em relação ao mérito torna as partes iguais e preserva a amizade, como dissemos.
É essa, então, a maneira pela qual nos deveríamos associar com os desiguais: o homem que é beneficiado com respeito à riqueza ou à virtude deve retribuir com honras, compensando o outro na medida de sua capacidade. Com efeito, a amizade pede a um homem que faça o que pode e não o que é proporcional aos méritos do caso, visto que isso nem sempre é possível (por exemplo, no caso das honras prestadas aos deuses ou aos pais), pois ninguém jamais lhes poderia pagar o equivalente do que recebe, mas o homem que os serve tanto quanto está a seu alcance é considerado um homem bom.
É por isso que não parece lícito a um homem deserdar seu pai (embora o pai possa deserdar o filho); como devedor que é, deve pagar, mas nada do que um filho possa fazer será equivalente ao que recebeu, de tal forma que ele continua sempre em débito. Mas do mesmo modo que credores podem perdoar uma dívida, também um pai pode fazê-lo. Ademais, pensa-se que ninguém repudiaria um filho, a não ser que este fosse profundamente perverso; com efeito, deixando de lado a amizade natural entre pai e filho, é próprio da natureza humana não negar ajuda a um filho. Mas se este de fato é perverso, evitará ajudar o pai ou não fará muito empenho nisso, pois a maioria das pessoas deseja receber benefícios, porém evita fazê-los por considerar que isso não lhe traz proveito.
Sobre essas questões dissemos o bastante" (fls. 191 usque 194)"


  • Editora: Martin Claret




  • Autor: ARISTOTELES




  • ISBN: 8572324305




  • Origem: Nacional