sábado, 6 de outubro de 2012

DAS MOSCAS DA PRAÇA PÚBLICA

Assim falava Zaratustra:

Foge, meu amigo, para tua soledade! Vejo-te aturdido pelo ruído dos grandes homens e crivado pelos ferrões dos pequenos.

Dignamente sabem calar-se contigo os bosques e os penedos. Assemelha-te de novo á tua árvore querida, a árvore de forte ramagem que escuta silenciosa, pendida para o mar.

Onde cessa a soledade principia a praça pública, onde principia praça pública começa também o ruído dos grandes cômicos e zumbido das moscas venenosas.

No mundo as melhores coisas nada vales sem alguém que as represente; o povo chama a esses grandes homens.

O mundo compreende mal o que é grande, quer dizer, o que cria; mas tem sentido para todos os representantes e cômicos das grandes coisas.

O mundo gira em torno dos inventores de valores novos; gira invisivelmente; mas em torno do mundo giram o povo e a glória: assim "anda o mundo".

O cômico tem espírito, mas pouca consciência do espírito. Crê sempre naquilo pelo qual faz crer mais energicamente - crer em si mesmo.

Amanhã tem uma fé nova, e depois de amanhã outra mais nova. Possui sentidos rápidos como o povo, e temperaturas variáveis.

Derribar: chama a isto demonstrar. Enlouquecer: chama a isto convencer. E o sangue é para ele o melhor de todos os argumentos.

Chama mentira e nada a uma verdade que só penetra em ouvidos apurados. Verdadeiramente só crê em deuses que façam muito ruído no mundo.

A praça pública está cheia de truões ensurdecedores, e o povo vangloria-se dos seus grandes homens. São para eles os senhores do momento.

O momento oprime-o e eles oprimem-te a ti, exigem-te um sim ou um não. Desgraçado! Queres colocar-te entre um pró e um contra?

Não invejes esses espíritos opressores e absolutos, ó! amante da verdade! Nunca a verdade pendeu do braço de um espírito absoluto.

Torna ao teu asilo, longe dessa gentes tumultuosa; só na praça pública assediam uma pessoa com o "sim ou não"?

As fontes profundas têm que esperar muito para saber o que caiu na sua profundidade.

Tudo o quanto é grande passa longe da praça pública e da glória. Longe da praça pública e da glória viveram sempre os inventores de valores novos.

Foge, meu amigo, para a soledade; vejo-te aqui aguilhoado por moscas venenosas.

Foge para onde sopre um vento rijo.

Foge para tua soledade. Viverás próximo demais dos pequenos mesquinhos. Foge da sua vingança invisível! Pra ti não mais que vingança.

Não levantes mais o braço contra eles!

São inumeráveis, e o teu destino não é ser enxota-moscas!

São inumeráveis esses pequeninos e mesquinhos; e altivos edifícios se têm visto destruídos por gotas de chuva e ervas ruins.

Não és uma pedra, mas já te fenderam infinitas gotas. Infinitas gotas continuarão a feder-te e a quebrar-te.

Vejo-te cansado das moscas venenosas, vejo-te arranhado e ensanguentado, e o teu orgulho nem uma só vez se quer encolerizar.

Elas desejariam o teu sangue com a maior inocência; as suas almas anêmicas reclamam sangue e picam com a maior inocência.

Mas tu, que és profundo, sentias profundamente até as pequenas feridas, e antes da cura já passeava outra vez pela tua mão o mesmo inseto venenoso.

Pareces-me altivo demais para matar esses glutões; mas repara, não venha a ser destino teu suportar toda a sua venenosa injustiça!

Também zumbem à tua roda com os seus louvores. Importunidades: eis os seus louvores. Querem estar perto da tua pele e do teu sangue.

Adulam-te como um deus ou um diabo! Choramingam diante de ti como de um deus ou de um diabo. Que importa?

São aduladores e choramingam, nada mais.

Também sucede fazerem-se amáveis contigo; mas foi sempre essa a astúcia dos covardes. É' verdade; os covardes são astutos!

Pensam muito em ti com a alma mesquinha. Suspeitam sempre de ti. Tudo o que dá muito que pensar se torna suspeito.

Castigam-te pelas tuas virtudes todas.

Só te perdoam verdadeiramente os teus erros.

Como és benévolo e justo, dizes: "Não têm culpa da pequenez da sua existência". Mas a sua alma acanhada pensa: "Toda a grande existência é culpada".

Mesmo que sejas benévolo com eles, ainda se consideram despreparados por ti e pagam o teu benefício com ações dissimulados.

O teu mudo orgulho contraria-os sempre, e alvorotam quando acertas em ser bastante modesto para ser vaidoso.

O que reconhecemos num homem infamamo-lhe também nele Livra-te, portanto, dos pequenos.

Na tua presença sentem-se pequenos, e sua baixeza arde em invisível vingança contra ti.

Não notaste como costumavam emudecer quando te aproximava deles, e como as forças os abandonavam tal como a fumaça que se extingue?

Sim, meu amigo; és a consciência roedora dos teus próximos, porque não são dignos de ti. Por isso te odeiam e quereriam sugar-te o sangue.

Os teus próximos hão de ser sempre moscas venenosas. E o que é grande em ti deve precisamente torná-los mais venenosos e mais semelhantes às moscas.

Foge, meu amigo,para a tua soledade, para além onde sopre vento rijo e forte. Não é destino teu ser enxota-moscas.

Assim falava Zaratustra.

(NIETZSCHE - ASSIM FALAVA ZARATUSTRA - Livor para toda gente e para ninguém - do original "ALSO SPRACH "ZARATUSTRA" - EDIÇÕES DE OURO - TECNOPRINT GRÁFICA EDITORA - MCMLXX).


(http://www.oktiva.net/oktiva.net/1209/nota/161599)

"Entregue às Moscas", uma publicação criada, editorada e produzida pelo Grupo Acidum.

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